Passaram-se dezenove anos desde a
última vez que pisei ali. Foi doída a ida para a capital, mas eu julgava ter
sido necessária para que eu fosse alguém na vida. E foram tantas vidas vividas
nesse meio tempo... Que nesse miolo, muitas memórias foram esquecidas...
Memórias de uma vida que já não me pertencia. Das poucas que ficaram, a maioria
era de família, e uma, especificamente, lembro-me que muito me valia. Mesmo não
sendo família, uma grande saudade eu ainda tinha. Deixei as malas, eu corri pra
praça, ainda de dia.
Fui ter um dedo de prosa com
Padre Bento, a quem eu pedia, desde pequeno:
“- A benção seu Padre!”
E respondia enquanto fazia o sinal da cruz com o polegar em
minha testa:
“- Que Deus te abençoe meu filho!”
Vou fazer
aqui um breve resumo da história:
Ele tinha seu jeito, sereno, sorridente... Mas dava seus
puxões de orelha quando devia.
E sempre me soava engraçado,
receber a benção do “Bento”! Ora, na minha cabeça de criança, a benção do Padre
Bento valia mais que a dos outros, já que era tão abençoado, que carregava
“Bento” no nome.
Padre Bento me ouvia as
confissões e dava sempre as mesmas penitências:
“- Reze um ‘Pai Nosso’ e três ‘Ave Marias’!”
E não importava o pecado, ou a quantidade deles... Na
verdade, não era uma condição pra ser perdoado. Ele sabia que enquanto rezava,
refletia sobre os pecados, e essa reflexão sempre levava ao arrependimento pelo
que tinha feito. E o que é o perdão, se não o abraço acolhedor em resposta ao
arrependido, não é mesmo?
Padre Bento
não era daqui. Tinha vindo em missão de outro lugar. Era pra ser só uma temporada, mas se sentiu acolhido e
resolveu ficar – dizia ele. No seu lugar eu teria ido pra longe daquelas beatas
solteironas que mais julgavam os hippies do que faziam pelos pobres. Eu teria
ido pra uma paróquia maior, que tivesse mais gente freqüentando, mais recursos,
mais isso, mais aquilo... Eu pensava assim. Como cantou o Tremendão “ele é uma
criança e não entende nada...”.
Chegando,
pois, à capela daquele lugar onde cresci, encontrei Padre Bento sentado à
porta, como se já me esperasse com o sorriso sereno de sempre:
“- A benção seu Padre!”
E fez-se todo o ritual. Padre Bento já demonstrava cansaço,
sinais do tempo...
Começou a conversa,
perguntando-me, por onde andei esses anos todos, que de mim só souberam
notícias vagas. Lhe falei da vida, do trabalho, dos causos, das moças (este
último assunto, abordei com cuidado, com medo de receber um grande sermão, que,
surpreendentemente resumiu-se a um “- só não faça aos outros o que não quer
para si!”).
Papo vai, papo vem, Padre Bento,
embora já com uma certa idade, continuava o mesmo. O sereno homem de sempre,
cuidando da capela como se fosse o último abrigo de todos dali, cuidando de
todos como eu não cuidava nem de mim. Aturando novas gerações de beatas,
políticos querendo apoio ou guerra, e os que só vêem Deus na necessidade. Nunca
sequer virou o rosto a qualquer que fosse o pobre, doente, ou infeliz judiado
pela vida...
Lá para o meio da conversa,
perguntou-me o que eu fazia pelos meus irmãos (referia-se aos necessitados).
Engoli seco, e não soube o que responder. Ele então me disse:
“- Vá para dentro da capela. Reze um ‘Pai Nosso’ e três ‘Ave
Marias’!”
De certa
forma, aquilo não era uma confissão... Não oficialmente, mas resolvi acatar. Durante
a reza, lembrei da minha infância. Lembrei que vivia igualmente com todos. Não
conhecia a diferença entre eu e o rico, entre o rico e o pobre, entre qualquer
um e eu. E percebi que tinha tido sucesso na vida... E era pobre de espírito.
Ao me
levantar, sentia-me menos frio. E lá estava Padre Bento, com o seu sorriso
sereno, de sempre, no rosto, com os braços abertos e dizendo:
“-Agora sim, você voltou!”
Sentei-me com ele novamente no
degrau da porta da capela e tornamos a fiar conversa. Padre Bento então falava
dos homens, e falava de Deus. Falava daquele lugar, e das andanças do Cristo. E
me fez entender sua vida ao dizer:
“- Filho, Jesus não levantou quatro paredes e fundou uma
igreja. Ele apontou para um homem e disse que sobre ele estaria a sua Igreja.
Cristo quer que sejamos Igreja em qualquer lugar, e devemos ser mais, onde esta
mais fizer falta. Às vezes, o que te enobrece neste mundo, te empobrece a alma,
e se a alma está fraca, não tens força pra ajudar ao outro. E se não ajuda, sua
existência não faz sentido”.
No fim da
conversa, eu concordava com tudo o que ele havia dito. Estava impressionado com
tamanho conhecimento que Padre Bento tinha, mesmo vivendo ali. Sua visão de
mundo era, com certeza, maior do que a minha e de muitas outras pessoas por aí.
Mas eu estava cego até então.
Ao se despedir, Padre Bento
gritou de lá:
“- Deus te acompanhe meu filho! Vai e não perde o caminho de
volta!”
Por semanas
refleti sobre as coisas que ele havia dito. O que mais me encabulava, era como
uma pessoa que dedicou a vida à caridade e a simplicidade de um lugar afastado
do resto do mundo, quase esquecido, poderia compreender tanto sobre tudo o que
acontecia fora dali, como se conhecesse de perto tal realidade?
Cerca de
cinco meses depois, recebi a notícia de que Padre Bento havia falecido,
dormindo (como os passarinhos, dizem). Descobriram que ele era de uma das
famílias mais abastadas da capital. Deixou um testamento. Nele, haviam dois
pedidos. O primeiro dizia para sepultá-lo ali mesmo, onde ele escolheu viver; o
segundo dizia para doar tudo da família que lhe coubesse para três instituições
de caridade que haviam ali pelas redondezas.
Quando
penso na vida e nas palavras de Padre Bento, lembro-me de São Francisco e seu
compromisso com os aflitos... Penso que agora, São Francisco pode ter lá, pousado em si, mais um passarinho...