terça-feira, 18 de setembro de 2012

A trilha do pássaro de São Francisco - Allyson Alves.




Passaram-se dezenove anos desde a última vez que pisei ali. Foi doída a ida para a capital, mas eu julgava ter sido necessária para que eu fosse alguém na vida. E foram tantas vidas vividas nesse meio tempo... Que nesse miolo, muitas memórias foram esquecidas... Memórias de uma vida que já não me pertencia. Das poucas que ficaram, a maioria era de família, e uma, especificamente, lembro-me que muito me valia. Mesmo não sendo família, uma grande saudade eu ainda tinha. Deixei as malas, eu corri pra praça, ainda de dia.
Fui ter um dedo de prosa com Padre Bento, a quem eu pedia, desde pequeno:

“- A benção seu Padre!”

E respondia enquanto fazia o sinal da cruz com o polegar em minha testa:

“- Que Deus te abençoe meu filho!”

            Vou fazer aqui um breve resumo da história:
Ele tinha seu jeito, sereno, sorridente... Mas dava seus puxões de orelha quando devia.
E sempre me soava engraçado, receber a benção do “Bento”! Ora, na minha cabeça de criança, a benção do Padre Bento valia mais que a dos outros, já que era tão abençoado, que carregava “Bento” no nome.
Padre Bento me ouvia as confissões e dava sempre as mesmas penitências:

“- Reze um ‘Pai Nosso’ e três ‘Ave Marias’!”

E não importava o pecado, ou a quantidade deles... Na verdade, não era uma condição pra ser perdoado. Ele sabia que enquanto rezava, refletia sobre os pecados, e essa reflexão sempre levava ao arrependimento pelo que tinha feito. E o que é o perdão, se não o abraço acolhedor em resposta ao arrependido, não é mesmo?
            Padre Bento não era daqui. Tinha vindo em missão de outro lugar. Era pra ser só  uma temporada, mas se sentiu acolhido e resolveu ficar – dizia ele. No seu lugar eu teria ido pra longe daquelas beatas solteironas que mais julgavam os hippies do que faziam pelos pobres. Eu teria ido pra uma paróquia maior, que tivesse mais gente freqüentando, mais recursos, mais isso, mais aquilo... Eu pensava assim. Como cantou o Tremendão “ele é uma criança e não entende nada...”.
            Chegando, pois, à capela daquele lugar onde cresci, encontrei Padre Bento sentado à porta, como se já me esperasse com o sorriso sereno de sempre:

“- A benção seu Padre!” 

E fez-se todo o ritual. Padre Bento já demonstrava cansaço, sinais do tempo...
Começou a conversa, perguntando-me, por onde andei esses anos todos, que de mim só souberam notícias vagas. Lhe falei da vida, do trabalho, dos causos, das moças (este último assunto, abordei com cuidado, com medo de receber um grande sermão, que, surpreendentemente resumiu-se a um “- só não faça aos outros o que não quer para si!”).
Papo vai, papo vem, Padre Bento, embora já com uma certa idade, continuava o mesmo. O sereno homem de sempre, cuidando da capela como se fosse o último abrigo de todos dali, cuidando de todos como eu não cuidava nem de mim. Aturando novas gerações de beatas, políticos querendo apoio ou guerra, e os que só vêem Deus na necessidade. Nunca sequer virou o rosto a qualquer que fosse o pobre, doente, ou infeliz judiado pela vida...
Lá para o meio da conversa, perguntou-me o que eu fazia pelos meus irmãos (referia-se aos necessitados). Engoli seco, e não soube o que responder. Ele então me disse:

“- Vá para dentro da capela. Reze um ‘Pai Nosso’ e três ‘Ave Marias’!”

            De certa forma, aquilo não era uma confissão... Não oficialmente, mas resolvi acatar. Durante a reza, lembrei da minha infância. Lembrei que vivia igualmente com todos. Não conhecia a diferença entre eu e o rico, entre o rico e o pobre, entre qualquer um e eu. E percebi que tinha tido sucesso na vida... E era pobre de espírito.
            Ao me levantar, sentia-me menos frio. E lá estava Padre Bento, com o seu sorriso sereno, de sempre, no rosto, com os braços abertos e dizendo:

“-Agora sim, você voltou!”

Sentei-me com ele novamente no degrau da porta da capela e tornamos a fiar conversa. Padre Bento então falava dos homens, e falava de Deus. Falava daquele lugar, e das andanças do Cristo. E me fez entender sua vida ao dizer:

“- Filho, Jesus não levantou quatro paredes e fundou uma igreja. Ele apontou para um homem e disse que sobre ele estaria a sua Igreja. Cristo quer que sejamos Igreja em qualquer lugar, e devemos ser mais, onde esta mais fizer falta. Às vezes, o que te enobrece neste mundo, te empobrece a alma, e se a alma está fraca, não tens força pra ajudar ao outro. E se não ajuda, sua existência não faz sentido”.

            No fim da conversa, eu concordava com tudo o que ele havia dito. Estava impressionado com tamanho conhecimento que Padre Bento tinha, mesmo vivendo ali. Sua visão de mundo era, com certeza, maior do que a minha e de muitas outras pessoas por aí. Mas eu estava cego até então.
Ao se despedir, Padre Bento gritou de lá:

“- Deus te acompanhe meu filho! Vai e não perde o caminho de volta!”

            Por semanas refleti sobre as coisas que ele havia dito. O que mais me encabulava, era como uma pessoa que dedicou a vida à caridade e a simplicidade de um lugar afastado do resto do mundo, quase esquecido, poderia compreender tanto sobre tudo o que acontecia fora dali, como se conhecesse de perto tal realidade?
            Cerca de cinco meses depois, recebi a notícia de que Padre Bento havia falecido, dormindo (como os passarinhos, dizem). Descobriram que ele era de uma das famílias mais abastadas da capital. Deixou um testamento. Nele, haviam dois pedidos. O primeiro dizia para sepultá-lo ali mesmo, onde ele escolheu viver; o segundo dizia para doar tudo da família que lhe coubesse para três instituições de caridade que haviam ali pelas redondezas.
            Quando penso na vida e nas palavras de Padre Bento, lembro-me de São Francisco e seu compromisso com os aflitos... Penso que agora, São Francisco pode ter  lá, pousado em si, mais um passarinho...

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